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Mostrando postagens de 2009

Antes das cinco

Ela plugou os fones de ouvido no notebook. Estava no ritmo de música, mas mesmo assim não perdia a besta educação de não incomodar os outros o máximo possível, ainda que esses outros a incomodassem. Havia tido um dia cheio, cansativo, e agora precisava descansar. Lembrou do latte que tomara no outro dia com as amigas, em como fora divertido perder-se junto de quem se gosta. Não era fácil, ela sabia, ordenar seus pensamentos. Eles voavam como cupins de primavera, intrometendo-se em todos os cantos e vãos onde a luz aparece. De repente, como se os cupins tivessem se transformado em abelhas rainhas furiosas uma com a presença da outra, a revolução começou. Um pensamento se debatia com o outro, mais bêbados do que se estivessem realmente ébrios. Como toda revolução, eles se muniram de vários argumentos, colocaram-nos em trouxinhas, pegaram as facas e canivetes e começaram a se atacar de todas as direções. As trouxinhas, claro, voaram longe. Em um estrondo silencioso, os argumentos se quebr

Amor cachorro

Greg queria um cachorro. Pedira a sua mãe, e ela lhe respondera em tom ríspido, "Cachorros tomam tempo; vá estudar." Assim, cresceu isolado do contentamento que um bichano lhe traria, das descobertas e alegrias que invejava em seus colegas de classe. Não sabia o que era estar sozinho e ter companhia mesmo assim. Desconhecia as emoções trazidas pelo amor, ele, que não amava ninguém. Curtiu a infância como pôde, não teria feito nada diferente. Mas chegou à adolescência assim, sem saber o que era o amor. O amor; não a paixão. Pela paixão, passou diversas vezes ao longo dos anos. Sabia cada detalhe sórdido e brilhante que vem com a paixão, conhecia as músicas que tocavam, os poemas que liam, as camas em que deitavam. E o irritava que, na cama do amor, do puro amor, deitasse só. Homem feito, tinha sua mulher, e a amava. Mas não era amor. Não era aquele sentimento simples e honesto que todos dizem sentir por algo. Faltava-lhe. Perdia-se. Procurou por ele em carros, motos, amigos, b

À Tua Procura

Lia-se na placa, escritório de advocacia. Era o que ela recordava dele. Da vida anterior, de seus sonhos, fora isso que ficara. Agora ele se tinha formado, não trabalhava mais com o pai; montara seu próprio escritório. Claro, ainda ficava no mesmo local, afinal era perto de onde morava também. Perto de todas aquelas mansões de marfim, cheias de piscinas e campos de futebol. Ela tocou a campainha, pois um aviso pregado no vidro da porta dizia para não bater. Abriu-lhe a porta uma loura estonteante, tanto mais refinada quanto mais justo o terninho vermelho que usava. Esses grandes nomes do poder sempre fazem questão de se rodear das mais belas carnes. ―Em que posso ajudá-la, senhora? ―Por favor, o Dr. Sovieman está? ―De que se trata? ―É assunto particular. ―Sinto muito, mas ele está extremamente ocupado. Precisa agendar um horário antes. O quadro na parede pendia ligeiramente torto. Deprimia-lhe que um diploma tão requintado e empoado de cobiça não fosse levado a sério. Afinal ela sabia,

Esgotamento Gota a Gota

Quando cansa, o corpo cansa, tudo cansa, cansa mais de não girar. O cansaço treme e faz o que nunca mais irei sonhar. Quantos planos, vãos enganos, ao ralo guiaram por tanto cansar. A noite chega, traz a vida e uma vontade de gritar. Passos ora grandes, cidades maravilhosas e tudo o mais que podia entrar. Agora tudo é náusea, o cheiro que faz vomitar. Se pudesse, lhe diria, mas o tempo está a se esgotar. Se salvamos, se perdemos, não há mais ajuda possível no ar.

acho

eu acho que acho, porque acho, mas acho sem saber que acho que é tão verdade, que te amo.

Álcool, Fogo e Amores

Bola treze, vai na bola treze. A sinuca nunca fora sua maior paixão, embora envolver-se em problemas (mais do que sair de tais) fosse sua especialidade. Como havia criado confusões. E quase sempre não fez nada para resolvê-las, afinal, qual a graça de um circo se não estiver pegando fogo? Ainda que do fogo tivesse certo medo, a mão do rapaz é que tampava sua bebida flamejante, que em goles rápidos desaparecia. E depois vinham as longas conversas supostamente intelectuais, pois, por mais que se valorizasse exacerbadamente a aparência e ela fosse quem, na grande totalidade dos casos – sóbrios ou semi –, contasse, ainda havia certo culto ao intelecto ébrio, como se ele fosse o melhor galanteador das noites enegrecidas. Ainda assim, seu taco dizia para tentar a treze – estava com os pares, mas isso era injusto… treze sempre havia sido seu número. Mesmo no dois ou um. E qual o mal de acertar na bola? Nesses casos inocentes, um acerto sempre é um acerto, não importa o erro envolvido. Vai par

Cheers in the Feast of Muses

Poetry, surge and nausea, poetry, suicidal song, poetry, that restarts from another world, in another life. You left us hungrier, poetry, strange food, if no bread equals you: the fly swallows the spider. Poetry, under the principles and the vague gifts from the universe: in your incestuous lap, the beautiful cancer of verse. Blue, in flames, the tellurium reinstates the poet's essence, and what is lost is rescued... Poetry, secret death. (Carlos Drummond de Andrade, "Brinde no Banquete das Musas" - translated by Adriana F. M. Oliveira)

The Arch

What wants the angel? to call her. What wants the soul? to be lost. To be lost in harsh guyanas to never again find itself. What wants the voice? to bewitch him. What wants the ear? to soak itself in blasphemous screams till it rests stunned. What wants the cloud? to kidnap him. What wants the body? to solve itself, to efface life's memory and all that is memory. What wants the passion? to stop him. What wants the chest? to close itself against the powers of the world to fuse itself in darkness. What wants the song? to rise itself in arch above the abyss. What wants the man? to rescue himself, to the prize of a song. (Carlos Drummond de Andrade, "O Arco" - translated by Adriana F. M. Oliveira)

Discovery

The tooth bites the poisoned fruit the fruit bites the poisoned tooth the poison bites the fruit and bites the tooth the tooth, biting itself, discovers now the toothsome pulp out of nothing. (Carlos Drummond de Andrade, "Descoberta" - translated by Adriana F. M. Oliveira) This is a poem by Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), the most influential Brazilian poet of the 20th century. He was born in Minas Gerais, lived in Rio de Janeiro, and died on August 17th. Why is it that I love him? Poema de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), o mais influente poeta brasileiro do século vinte. Nasceu em Minas Gerais, morou no Rio de Janeiro, e morreu em 17 de agosto. Por que será que o amo?

Rendição

Como é difícil amar um homem! Ao acordar, a falta do abraço, do rosto cansado, da pele áspera e tão, mas tão macia. Tudo me faz delirar. Toca uma música em algum lugar, vejo um filme, passa uma cena na televisão. Leio teu livro. E esse amor estranho me faz querer dividir tudo. Tudo o que antes, ah, antes era só meu. E fico confusa, sem saber o que fazer, como não ser chata ou irritante, ausente ou presente demais. Como matar todo o ciúme primitivo que acaba com as paixões. Das paixões, aliás, como manter o desejo vivo, num mar de estranhas doenças? Sinto a vida passar, e eu passo. Sem urgência, mas passo. E como é engraçado perceber que ainda não sei amar. Talvez Carson tivesse mesmo razão, pelo menos em algo. Da próxima vez, amo primeiro uma árvore. Um rochedo. Uma nuvem.