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Mostrando postagens de 2007

Capítulo Primeiro

O chinelo arrastando pela casa. A mãe e a vó no fogão, cuidando para que o frango fosse pontual e saboroso. O lustre da sala meio torto, meio pendido, cheio de mosquitos mortos. Os dois irmãos mais velhos discutindo a teoria de Einstein aplicada à corrida dos cavalos na televisão. O tapete enrugado, moído por tantas pisadelas descuidadas. O avô com seus jornais, contando ao filho, talvez pela enésima vez, suas histórias de guerra. O pratinho de azeitonas quase caindo na beirada da mesa. Os cachorros latindo, as rodas levando os carros adiante na rua. O chiado do fogo, baixo, ensurdecedor. Tudo sempre igual. Verdade que tia Carmem já não podia mais vir, afinal jogaram muita terra sobre ela na outra semana. Mas a vizinha viera em seu lugar, pequena porém austera. E ele, tão sabido quanto seus sete anos lhe permitiam, tratou de se arranjar longe dela. Mulheres são um perigo, ele entendia bem. Aquelas trancinhas, ele as viu nos filmes e sonhos, tinha medo da forca que podiam virar. E

Farmakon

Preciso urgente de uma pílula. A tal. Injetora de ânimo e coragem - vigor. Mas ela não existe, não aqui perto de casa. Os homens a proíbem. Espera. Talvez não seja essa pílula. Eu quero aquela outra. A de fórmula indecifrada. Será que há uma conspiração a esconder-lhe a receita? Decidi. Vou a Pasárgada. Pedirei ao rei, ele me há de prover com um estoque decente. Ei! Por favor! Preciso do telefone de um táxi! Como é? Não sabe o caminho? Mas que droga, odeio esses novatos. Vá, vá. Você não me serve. Vou a pé. Cadê meu guia de bolso? Ah, esqueci, aqui não sou turista. Pô! Por que só os turistas é que carregam as coordenadas do mundo? Que injustiça. Quando voltar de lá, anoto no meu bloquinho: quero ser turista na próxima encarnação.  Vou pedir a Iemanjá. Carregar aquelas Canon ultramodernas, lambuzada de filtro solar. Igualzinho o poema. Aliás, o poema não era sobre turistas, por que falava de filtros então? Isso me lembra a história do andróide que queria ser menino e foi procurar a fada

Fábula transviada

Quantas convicções perto de anos tão baratos! Seus últimos foram, realmente, fáceis. Nada de trabalho duro, de guerras nucleares no quintal de casa, de desnutrição. Beleza? Era com ela. A sedução era seu ataque mais eficaz: arrebatava dos homens nas rodovias, engravatados e alienados, às pedras enfeitadas por passarinhos descuidados. Conquistava a última batata-frita, encantava o namorado da amiga, enfeitiçava os primos. Tudo na base do lúdico jogo de Eros. Mas liberdades assim trazem a opressão, e a menina tinha, ainda por cima, de conquistar suas oponentes. Os peões cor-de-rosa a invejavam, e não era para menos. Ela até entendia. O mosquitinho desse pecado capital sempre foi endêmico, e o serviço de saúde no país era tão anódino quanto a vontade divina de mover montanhas. Como Deus não age, dinamites e tratores fazem a Sua parte. Em nosso caso, restou a tarefa ao policial do quarteirão de cima. Embora seu principal artifício fosse a violência, não hesitou ao ver nossa ninfeta passar.

Inestelar

Há uma teoria, não muito difundida, de que a Lua exerceria papel fundamental na maré dos olhos. Não, os olhos de ressaca são outra metáfora. Voltemos a nossa. O mito dos lobisomens traz exatamente a tal protagonista: Lua Cheia. Imagino o que os antigos pensavam quando a viam, geométrica, no céu. Porventura representasse ela o mesmo Sol que dourava suas peles durante o dia. Afinal, não é fácil diferenciá-los. Não, não ria ainda. Não falo bobagens por dizer. São idênticos, sim, tais astros. Quando criança, diga-me se lembrar, sabia o que eram? Vozes lhe diziam seus nomes. Mas você, infanto-estreado no mundo, provavelmente os consideravazinho iguais. Ficam acima de sua cabeça, rotundos e brilhantes, iluminados e iluminadores. Intimadores. Nosso primeiro satélite foi, com certeza, um Sol-Lua. Imaginar que tal influência pueril fugiu de sua vida nos dias atuais é ingenuidade. Porque há dias em que o liqüidificador mistura demais os ingredientes, ocasionando uma inversão estelar. Nosso Sol-L

Coraçanando lutas

Calma como a água, a doçura da menina era prazeirar os gatinhos da vizinha. E olha que não eram poucos. Malhadinho, Pintado, Cruzinha, Ferro-Céu, Xantonila e Melcreme. Meia-dúzias, eram eles que, em seus miados pelos arredores, arco-irisavam lojas e padarias, bancos, magazines, carrinhos de lanche. Todo dia, enfileiravam-se sobre o muro verde recoberto de heras, e saiam à caça de diversão. Mas divertido mesmo era rolar na areia, no parque ali do bairro. Os passantes não gostavam muito, eles enfeiavam a cidade, diziam. Os políticos propagandeavam que acabariam com os gatos no próximo mandato. Os policiais diziam que, se houvesse aumento nas verbas, haveria como providenciar mais carrocinhas para a cidade, que estava necessitada. E os felinos não estavam nem aí. Algazarra eles queriam, algazarra eles tinham. Atormentavam todas as crianças: não sobrava uma em seu balanço que não fosse unhada, cedo ou tarde. Os pais, claro, achavam aquilo também um horror, e tentavam espantar os bichanos c

Acróstico em distensão e rima

R ubras são as noites em que me divertiste. Tua fala primorosa, ao pé do ouvido, nunca deixou vestígios de sua intenção primeva, singrar os mares poéticos em um ardil sagaz para chegar a minha imaginação. ** A ranzéis? Não, meu arquiteto do humor não se dá a esse luxo. Tece contos fantásticos e ilustra, sem cotejo, meus mais fiéis sonhos. Cria mundos onde a vida copiaria, facilmente, a arte. E diz tudo só pra mim. ** F ingiu que não viu, mentira. Seus olhos estiveram sempre a me acompanhar, do alto de seu pedestal. Mais tarde, viria parafraseadamente me dizer que estaria comigo. Só não percebeu que já estava. ** A lui de forma irrecuperável meu sono. Não te preocupam os meus compromissos.  Vai ao portão e diz que é só um vinhozinho, não faz mal a ninguém. Talvez teu império seja, afinal, sacro e romano.

Tempor(ão/al)

E não é que ele despertou nela o desejo de mais um dia? Ele, o homem das contradições. Tanto dizquesim-dizquenão, talvez fosse mesmo pra deixá-la entusiasmada. Correu com o café, passou-lhe a geléia. Um sorriso lambuzado veio em agradecimento. Como era bom observá-lo ali, escondido pelas folhas do jornal molhado! Uma maçã distraída mergulhava em sua boca. E esta repassava as últimas horas: as fileiras no supermercado, o paliteiro do bar, a macarronada com azeitonas que só ele sabia fazer; o filme dorminhoco, a dor nas costas do sofá; e, por fim, lembrou-lhe a água que caíra à noite, trazendo consigo a insônia. Não que houvesse sido uma noite ruim. Pelo contrário, fora o melhor ontem de sua vida.

Café com pão, café com pão

Certos nomes, de tão antigos, têm muitas histórias para contar. Essa é apenas uma, dos vários Josés. Na idade em que só usava calças para ir à missa, nosso José teve sua primeira namorada: a locomotiva elétrica que ganhara do pai no Natal. Seu João ficaria três meses sem a marmita na obra, mas conseguira a alegria do filho. Nada lhe dava mais prazer do que se sentar, à noitinha, ao lado das mãos rendeiras de Dona Maria e observar Zezinho bater palmas a cada volta dos vagões. Zezinho cresceu rápido, e seus irmãos não se lembram do dia exato em que passaram a chamá-lo de Seu Zé. Apenas acontecera, tal como o primeiro emprego (nesse, ainda Zezinho). O garoto virou carregador de cadeiras, quando a comida em casa rareou. Seus sete irmãos não tinham mais tempo para ir à escola, e "o único trem que passa furioso lá é o diretor, mainha. Quero trabalhar também, pra mó de juntar um dinheirinho e montar minha estação, vai ser toda de vidro, um apito diferente pra cada trem." Ele não sab

Pensamentos em névoa de um clérigo sem valor.

Minha batina já está desbotada por cinco anos de profissão. Uma carreira empoeirada, se me permitem dizer. Mas meus grandes mestres - os terrenos - me ensinaram prestimosidades que duram por toda uma vida; confiar, por exemplo. Servos da ilusão e da matéria, nós, homens, temos a inegável pretensão de sermos melhores que o próximo. E, partindo dessa premissa, torna-se missão dificultosa acreditar em alguém à primeira vista. Aquela farpa fica incomodando nosso dedo, nos dizendo "não, não, não", quando tudo de que precisamos é um pouco mais de sins. Os céus já dizem, e eu tenho de reafirmar, não há chuva que não se anuncie por meio de nuvens. "Confiai, acreditai na bondade das pessoas, e não duvideis de suas intenções." Ontem, foi-me testado tal princípio. Lá de cima, Ele chorava rios e cachoeiras. Franzia o cenho e despejava cargas de trovões, transparentemente imundos. Aqui, o chão se desbarrancava, as árvores se assustavam e os animais faziam um silêncio ensurde