Pensamentos em névoa de um clérigo sem valor.

Minha batina já está desbotada por cinco anos de profissão. Uma carreira empoeirada, se me permitem dizer. Mas meus grandes mestres - os terrenos - me ensinaram prestimosidades que duram por toda uma vida; confiar, por exemplo. Servos da ilusão e da matéria, nós, homens, temos a inegável pretensão de sermos melhores que o próximo. E, partindo dessa premissa, torna-se missão dificultosa acreditar em alguém à primeira vista. Aquela farpa fica incomodando nosso dedo, nos dizendo "não, não, não", quando tudo de que precisamos é um pouco mais de sins. Os céus já dizem, e eu tenho de reafirmar, não há chuva que não se anuncie por meio de nuvens.

"Confiai, acreditai na bondade das pessoas, e não duvideis de suas intenções."

Ontem, foi-me testado tal princípio. Lá de cima, Ele chorava rios e cachoeiras. Franzia o cenho e despejava cargas de trovões, transparentemente imundos. Aqui, o chão se desbarrancava, as árvores se assustavam e os animais faziam um silêncio ensurdecedor. Estive, por horas a fio, ajoelhado ao lado de minha cama, orando para que nosso Senhor acalmasse Sua ira. Já havia soado duas vezes o sino da capela, o que indicava hora mais que tardia para um sono clerical. Mas a macarronada de Dona Eulália me fazia giros ao estômago, pobre moça, arrancada de seus pais tão cedo por conta da maleita, achou asilo em nossa congregação, e agora fazia às vezes de cozinheira, sem que nunca lhe houvessem ensinado ao menos como temperar um frango. 

Pois estava eu prostrado à cama, cólicas me corroendo a comida, quando ouvi o carvalho seco da porta estalar. Prestei mais atenção. Era mesmo alguém a bater, ou minha fértil imaginação apoiada na insônia?

Resolvi me levantar e checar o que ocorria. As batidas tornavam-se mais fortes, insistentes. Pensei em procurar alguém, talvez o Tião, cabra bom que consertava as telhas após cada temporal. Não, melhor não incomodá-lo, mesmo os desafortunados merecem a paz em seu descanso. Vou abrir. Em passos pequenos, encontro uma vela receosa sobre a escrivaninha do saguão. Ateio-me a ela e prossigo, firme, em busca do desconhecido que bate.

Paro. Abrir? Sozinho? Já não sou mais jovem como outrora, sem músculos e sem força sou uma presa fácil. Li várias notícias da cidade, assassinos, ladrões, estupradores, eles estavam à solta! Não podia deixar que as irmãs corressem esse risco. Mas o que fazer? Senti o grão que era, na maré de conchas lustrosas de nosso Senhor. Infinitas são as graças perto da minha insignificância. E, afinal de contas, não custava nada ver quem era, para isso que eu havia mandado colocar uma janelinha na porta, uma fresta pela qual eu pudesse controlar os movimentos dos agregados, ou melhor, os perigos que nos cercavam. Minhas pernas, no entanto, não me obedeciam, tremiam, covardes, pelo caminho.

Estaquei. O Pai parecia ter-me ouvido, pois lançou-me um daqueles. Quase arrancou o lençol que cobria Irmã Rosa, cuja pele alva eu espiava no momento, perdido por meus devaneios. Eu entendi o recado, encostei a porta de seu quarto e continuei sendo arrastado até o barulho.

Bem que essas batidas podiam parar. Já me irritava ter que sair do meu quarto, agora ainda ser interrompido em minhas admirações. Não, não podia pensar assim, Ele ouviria. Como expurgação, teria de abrir a porta de qualquer maneira.

Encostei a testa suada na fresta da madeira, que rangia a cada martelada de fora. A névoa da chuva me impedia de ver muito adiante, mas pude reconhecer os traços típicos de um homem, gigante, pesado, batendo à minha porta! Não haveria de permitir sua passagem por este lugar, claro que não! Com tamanha robustez, ele me quebraria em mil varetas com uma simples baforada.

Hom'essa! E não descumpria eu as ordens de meu Pai? Confiai, diz-nos Ele.

Resolvi acabar de uma vez por todas com a folia. Os barulhos teriam de acabar, ou todos acordariam assustados e me pegariam ali, mais semelhante à vela que eu segurava do que ela própria. Pronto. Era agora. Fui.

Um homem bateu em minha porta e eu abri.

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