Carta ao Bonde


Prezado Veículo,
Conhecedor de vosso caráter particularmente público, venho por meio desta expressar minha profunda indignação ao fato ocorrido ontem, mais precisamente à metade do dia intitulado o oitavo do terceiro mês de nosso calendário finalmente gregoriano - finalmente, pois era inadmissível ter de esperar mais 400 anos para deixar Julius de lado. Enfim, triste me é perceber o quão distante vossa senhoria ainda se faz de vossos pobres passageiros pobres. Compreendo que tenhas toda uma tabela de horários, chegadas e partidas a cumprir, e que sejas instruído pelas mãos suadas de algum desjantado - e, portanto, desajustado. Ainda assim, pequenos segundos de inaptidão compromissal não justificam atitudes radicais como a vossa. O atraso que me acometeu no dia anterior a este estava fora de meu controle biológico, por maior e mais diversa que fosse minha fauna. Deus e todos os juízes hão de concordar comigo que as vísceras de um homem sofrem de TPMs incontroláveis. Pois bem, embora vosso limite de quilômetros por hora seja estritamente reduzido, ínfimo e até mesmo ridículo, devo acrescentar que é graças a ele que chego ao meu trabalho a tempo. E foi graças a ele também, por ser desprezível mas consideravelmente não-nulo, que não pude alcançá-lo, em meus maiores passos de atleta. Isso me trouxe um digníssimo esporro do Patrão, que agora anda às turras com qualquer vírgula que me sai fora de hora. Contabiliza-me até os pensamentos e respirações.
Peço-lhe, então, que consideres minuciosamente toda a carga humana e filosófica que de vós depende, para que não saias mais tão corrido da estação. Os homens, excedendo e muito as máquinas, se atrasam.
Agradeço desde já a atenção - potencialmente enorme, visto que escrevo miúdo para olhos sem lente.
Daqui, dali e para sempre,
Teu permanente passageiro.

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