Das poeiras que me cercam o sorriso
Não sei mais o que é adeus. Ou a Deus. Fui perdendo os dois aos poucos, mas posso me lembrar vividamente do dia em que descobri o que era ir embora. Fazia frio, e eu tinha acordado cedo para uma das obrigações infantis de uma família então católica. Escutava há duas horas cantorias e pais-nossos e fábulas sobre o joio, o trigo e os homens. Toda aquela atenção a histórias que perdiam a graça perto dos Lobatos e Shakespeares me entediava um pouco. Completava meu livro com palavras copiadas da página anterior, como dizia no enunciado, já certa de que havia algo de errado naquilo tudo. E pensava nos olhos dele. Naquela ternura azul brilhante que irradiava toda vez que sorria. O lugar onde me encontrava agora aumentava minhas preces, que não se pareciam em nada com o que me haviam ensinado. Tinha aprendido a conversar com Ele nas noites de lua clara em que os gritos e brigas reinavam na cozinha logo abaixo de meu quarto. Costumava fugir para o quarto de ninguém, abrir a enorme janela de vidro corrido e sentir o frescor da lufada que logo me invadia, preenchendo todos os poros e secando as lágrimas a meio caminho do rosto. Ficava lá um bom tempo, até me acalmar com a tranquilidade do vento e poder voltar a um sono indolor. Naqueles últimos dias, ainda corria para esse refúgio sempre que me lembrava dele. Das nossas tardes juntos, da falta enorme que me fazia. E, nessa exata manhã, não conseguia tirá-lo do pensamento; tudo ficou ainda mais claro quando vi minha mãe ao longe aparecendo para me buscar – eu não voltaria com minhas amigas dessa vez porque tinha uma notícia a receber, e outro lugar para estar. Durante toda a tarde, permaneci enclausurada em mim mesma no sofá já desbotado que se escondia no último andar, regando as almofadas com o desespero de um adeus eterno. Culpava quem cruzasse minha mente por ter acabado com a luz daqueles olhos, e não sabia de nada no mundo que pudesse aplacar da mesma forma toda a tristeza que me calava os lábios mordidos. Até que a noite caiu e ele bateu na janela, chamando minha atenção. Não tinha ido embora. Não, tinha voltado para ficar comigo o tempo que precisasse. Conversamos por algumas horas e fui dar um beijo de boa-noite em cada um da casa. Dormi com a renovada esperança de que a gente ainda se veria um dia, e poderíamos conversar por mais horas e horas trocando implícitos olhares azuis de compreensão.