Ode ao S

Vivo cada vez mais convencida de que nos parecemos em diversos e espantosos aspectos com aqueles répteis escamados e serpejantes que muitos têm por prática odiar. Carnívoros, muitos se valem de doses moderadas ou intensas de peçonha a fim de acabar com o inimigo; outros lançam mão da tática de sufocamento, sorrateiros e ferozes ao atacar a vítima sem deixar muitos vestígios. Não costumam mastigar a comida – e também aí, por infortúnio, identifico vários da nossa espécie –, engolindo-a inteira em completa gulodice. E muitas vezes triplicam de tamanho depois das refeições, e precisam de uma longa sesta para digerir tudo. Tantas coincidências. Mas ora se não é a ecdise, o genial processo de troca de pele que ocorre de tempos em tempos por toda sua vida, o que mais me espanta. Tais bichos se escondem em lugares seguros, param de comer, e esperam por um tempo até que a pele velha se descole da nova logo abaixo. Então a rompem e se arrastam para fora da roupa antiga, raspando e se esfregando em superfícies duras e ásperas para facilitar a troca. E fazem isso, entre outros motivos, para se livrar da “vida” gasta, dos parasitas externos, do que atrapalha. Como fênices, renascem. Tanto é assim que são símbolo de saúde, amplamente utilizados com tal conotação por veneradores de Esculápio, e ainda por insipientes adoradores de Mercúrio. Essa capacidade de se livrar de seus pedaços destruídos e se ver pronto para uma nova fase, ainda que com o corpo de outrora, repete-se a cada alvorada, em cada verso de Cartola, por todas as fronteiras desse gigante rotundo e azulado. E é um tremendo alívio perceber que deixamos para trás os traumas e machucados, dispostos a nos aventurarmos pelas mesmas embrenhadas matas onde um dia já nos perdemos. Periodicamente, isso nos reconforta. As serpentes nos aliviam. E me fascinam.

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